quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Transgênico: mais agrotóxico na nossa mesa

Por Elenita Malta Pereira
do site Outras Palavras
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“No presente, a ciência serve muito mais e objetivamente à técnica e à economia
do que à sociedade”
(Gilles-Eric Serralini, 2011)
Na última reunião da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTN-Bio), em 17 outubro, foi rejeitado pedido de audiência pública apresentado pelo Ministério Público Federal, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) para realizar um debate aberto com a sociedade sobre os impactos de sementes transgênicas resistentes ao herbicida 2,4-D – que estão em vias de liberação no Brasil. Segundo o representante do Ministério da Ciência e Tecnologia, Ruy de Araújo Caldas, a comissão não pode ser palco político para “leigos” no assunto: os debates devem ficar sob responsabilidade dos técnicos.
 
No entanto, a questão dos transgênicos envolve questões políticas que deveriam, sim, ser divulgadas entre a população “leiga”. Desde sua chegada no Brasil (em 1997, com a “soja maradona”), os Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) têm sido alvo de polêmicas e muita desinformação ao consumidor – o mais atingido pelas decisões dos “técnicos”. Não há consenso quanto às consequências dessa tecnologia para a saúde e os ecossistemas, especialmente quanto ao uso cumulativo de agrotóxicos. A CTN-Bio, instância científica que delibera sobre o assunto, tem sido alvo de críticas desde a publicação da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), por seus superpoderes e caráter antidemocrático.
Nos anos 1990, os transgênicos foram defendidos como alternativa benéfica para a agricultura: as modificações genéticas levariam à redução da fome no mundo, pelo aumento da produtividade, e à diminuição do uso de pesticidas. No entanto, as “ervas daninhas” adquiriram resistência – especialmente ao glifosato, principal herbicida usado em OGMs. As gigantes da agroquímica estão criando sementes para aguentar produtos mais agressivos, porque o glifosato sozinho já não é eficiente para matar “plantas invasoras”. Também a fome mundial aumentou, nos últimos quinze anos. Os argumentos de que, com os OGMs, a agricultura utilizaria menos agrotóxicos e resolveria o problema da fome falharam.
Guerra de gigantes
Sementes de soja e milho, com tecnologia da Dow Chemical, estão na iminência de ser aprovadas no Brasil. Elas resistem a três herbicidas: glifosato, glifosato de amônia e 2,4-D – este, um dos componentes do Agente Laranja (jogado pelos Estados Unidos no Vietnã nos anos 60), fabricado por sete empresas, entre elas a Dow e a Monsanto.
A Monsanto, por sua vez, está substituindo sua tecnologia RR, com tolerância ao glifosato, já que as plantas adquiriram resistência ao herbicida, e lançou a RR2, que além do herbicida incorpora genes produtores de proteínas inseticidas, capazes de acabar com a lagarta helicoverpa – recentemente surgida nas lavouras de RR. A tecnologia da Dow promete matar as plantas que já não morrem mais com glifosato e glifosato de amônia. Mas a Monsanto não quer perder a liderança nesse mercado e também pretende lançar sementes de soja e milho resistentes ao herbicida Dicamba.
O impressionante é que as sementes de ambas as empresas podem ser aprovadas no Brasil antes mesmo de serem aprovadas nos Estados Unidos, seu país de origem. Segundo o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, membro da CTN-Bio, o milho da Dow com 2,4-D pode ser aprovado até o final do ano, enquanto a soja pode demorar um pouco mais. E a soja com Dicamba também está em avaliação. “Basta que tramitem na CTNBio e recebam parecer favorável da maioria dos membros daquela comissão”, segundo Melgarejo.
A “novidade” dessas tecnologias é o uso de dois herbicidas muito perigosos, em especial o 2,4-D, substância que compôs 50% do tristemente célebre Agente Laranja – cujo uso pelos EUA, na Guerra do Vietnã, para destruir as florestas e assim visualizar melhor o inimigo deixou, até hoje, um legado de deformações, envenenamento e morte. Ele está classificado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como extremamente perigoso à saúde (classe toxicológica I), e ao ambiente (classe III).
Além disso, tanto o 2,4-D como o Dicamba são herbicidas com grande deriva e volatilidade, ou seja, são facilmente espalhados pelo vento, podendo contaminar lavouras não transgênicas – motivo pelo qual produtores dos EUA vêm protestando contra seu uso – e deixando o consumidor sem escolha. Mais importante: não há total segurança de que os transgênicos sejam inócuos à saúde humana, como afirmam seus defensores.
Dioxina e 2,4-D
Na tentativa de “garantir” a inocuidade do herbicida, a Dow e mais três empresas do ramo da biotecnologia montaram a Força Tarefa 2,4-D, um website destinado a divulgar informações sobre o agrotóxico. Segundo as empresas, “o uso do 2,4-D está relacionado ao seu papel indispensável para o controle de plantas daninhas no sistema do plantio direto, manejo do solo que iniciou o conceito de agricultura ambientalmente sustentável”. No site, há estudos que comprovariam a segurança humana e ambiental no uso do herbicida. Para as empresas, o 2,4-D não deveria ser associado com o Agente Laranja, já que a dioxina – a substância mais tóxica já inventada pelo homem, tão persistente e devastadora que continua presente no território vietnamita, causando contaminação do ambiente e das pessoas, especialmente crianças, e relacionada a várias doenças graves, conforme relatório do Instituto de Medicina dos EUA – só se formaria junto com outro componente, o 2,4,5-T.
No entanto, pesquisadores consideram que o produto não é seguro para a saúde ou para o ambiente, independente da presença da dioxina. Segundo o biólogo e pesquisador Gilles Ferment, o 2,4-D possui potencial de perturbador endócrino (capaz de alterar as funções hormonais) e de agente cancerígeno. Os perturbadores endócrinos podem causar danos à saúde humana durante o desenvolvimento fetal e infantil.
O dossiê “Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde”, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), citou pesquisas que relacionam o 2,4-D como um dos agrotóxicos responsáveis por contaminação da água. Especialistas se mostram preocupados com o uso generalizado da substância, a partir da aprovação das sementes transgênicas. Robin A. Bernhoft, médico e um dos diretores da Academia Americana de Medicina e Meio Ambiente, afirmou que o 2,4-D é considerado a causa de todos os cânceres e defeitos genéticos nos filhos de ex-combatentes americanos no Vietnã e de vietnamitas expostos ao Agente Laranja.
Chuck Benbrook, professor e pesquisador da área de sustentabilidade e saúde na agricultura da Universidade do Estado de Washington, apontou o risco de que a maior parte do 2,4-D usado no Brasil seja importado da China, com altos níveis de dioxina: “Concordo que o 2,4-D da Dow é muito mais limpo do que o dos anos 1970, mas quem pode garantir que os agricultores brasileiros irão comprar o 2,4-D mais caro e mais limpo?”. Isso também preocupa Leonardo Melgarejo: “A empresa alega que no Brasil só será utilizada a formulação ‘amina’, que não é volátil, com a qual a dispersão das partículas seria menor. Entretando, a formulação ‘éster’ é mais barata. E é comum a identificação, pela Anvisa, de aplicações de produtos proibidos e adulterados, coisa que ocorre fundamentalmente por conta da diferença de custos”.
Riscos e precaução
Gilles Ferment, um dos organizadores do livro “Transgênicos para quem” (download gratuito), afirma que as multinacionais de transgenia e os órgãos públicos de regulamentação instituíram o princípio de equivalência substancial: os produtos transgênicos não possuiriam propriedades diferentes dos não-transgênicos. Já que “as plantas transgênicas são consideradas iguais às não-transgênicas, basta adicionar estudos de bioensaios sobre alguns organismos não-alvo e alguns testes de toxicidade sobre camundongos para declarar definitivamente a segurança do OGM”, afirmam. Contudo, a avaliação do risco desses produtos deveria englobar os riscos para o funcionamento dos ecossistemas, bem como os impactos sociais decorrentes do emprego da tecnologia.
O princípio da precaução – obrigação legal no processo de análise de risco dos transgênicos e de atividades que possam causar dano ambiental, assumida pelo Brasil e diversos países no Protocolo de Cartagena, em 2000 – recomenda que, antes da aprovação do uso dessas sementes, sejam realizados testes à exaustão, que comprovem de fato a sua segurança e inocuidade ao ambiente e à saúde humana. Mas ele não vem sendo aplicado. O princípio estimula conhecer antes de usar. Na dúvida, não se deve ir em frente, pois os prejuízos, desconhecidos, podem ser irreversíveis. Segundo Ferment, um ex-presidente da CTN-Bio caracterizou o princípio da precaução como “anticientífico”, “inventado para derrotar a ciência”.
Além do risco dos transgênicos em si, há o risco inerente à aplicação dos agrotóxicos. Uma das características mais preocupantes do 2,4-D (e também do Dicamba) é o alto grau de disseminação do produto no ambiente, para além da área alvo da aplicação. Existe, portanto, risco de contaminação de lavouras ou de áreas em torno da plantação, especialmente no caso de aplicações aéreas. 
Nos EUA, a organização de agricultores Save our crops vem lutando contra a aprovação de OGMs utilizando 2,4-D e Dicamba. Eles temem a contaminação de seus cultivos – não transgênicos –, pois, embora recomendados para aplicação via aérea, “ambos os pesticidas são notoriamente propensos à deriva e volatilização, causando lesão e morte de plantas de culturas vizinhas e paisagens rurais”. No Brasil, alerta o engenheiro agrônomo Sebastião Pinheiro (UFRGS), considerando as altas temperaturas e ventos, jamais se deveria usar avião para aplicar agrotóxicos.
Recentemente foi divulgado um caso que justifica a precaução: aplicação de agrotóxico por via aérea atingiu uma escola em Rio Verde (GO), literalmente banhando crianças e professores que desfrutavam do horário de recreio. Todos ficaram intoxicados. Pelos riscos envolvidos nesse tipo de aplicação, a Campanha Permanente Contra o Uso de Agrotóxicos pede que ela seja banida, como já ocorre na União Europeia.
E o consumidor? 
Em meio a um mar de desinformação e mal entendidos, o consumidor está ficando praticamente sem opção. Faça o teste: quando for ao supermercado, dê uma olhada nas prateleiras dos produtos à base de milho e soja e veja se consegue encontrar uma marca cuja embalagem não esteja identificada com o triângulo amarelo. Na maior parte dos grandes supermercados, uma marca de óleo de soja não-transgênica pode talvez ser encontrada, com sorte, em meio à grande maioria transgênica. Farinhas, polentas, canjicas, salgadinhos, bolachas, fermentos para bolos e outros produtos que utilizam milho ou amido de milho também são, em grande parte, transgênicos. Os fabricantes alegam não haver milho não-transgênico à venda.
Outro ponto a ser observado é que as sementes de milho não-transgênicas estão sendo cruzadas com as transgênicas pela ação do vento na polinização. O problema é gravíssimo, pois representa ameaça real à biodiversidade brasileira – se continuar, não existirão mais sementes “crioulas”, aquelas transmitidas de geração a geração, desde os indígenas até a agricultura orgânica familiar. Seria o fim de um capítulo da história de populações tradicionais, que vêm guardando essas sementes ao longo de décadas – e até séculos. 
O fato de que os produtos que utilizam transgênicos estejam sinalizados com o “T” nas embalagens é uma vitória do consumidor, que tem o direito de saber o que contém um alimento. O problema é que até essa conquista básica pode estar ameaçada. Dois Projetos de Lei (PL) de senadores da bancada ruralista já tentaram barrar ou modificar a rotulagem, o PDL 90/2007, de Kátia Abreu (PMDB-TO) e o mais recente, PL 4148/2008, de Luis Carlos Heinze (PP-RS). Esse último, com a justificativa de que o símbolo com fundo amarelo, semelhante a placas de advertência, tensão ou risco, “vincula o alimento que contenha DNA ou proteína obtida através de organismo geneticamente modificado a circunstâncias de perigo, nocividade, cuidado, alerta, e outras mais para as quais a apresentação gráfica é usualmente destinada”. Mas a intenção da rotulagem é justamente essa: alertar os consumidores, já que não há comprovação científica da total segurança dos transgênicos para a saúde humana, como recomenda o princípio da precaução.
A bancada ruralista também quer mais flexibilização para os agrotóxicos. Segundo texto do Deputado Rosinha (PT-PR), em setembro de 2013 a Câmara dos Deputados aprovou a Lei de Conversão (nº25/2013) da Medida Provisória 619/2013, que vai agora à preciação do Senado Federal. Nela foram introduzidos três artigos, os de nº 52, 53 e 54, que tratam de agrotóxicos. O artigo 53 é o mais perigoso, pois concede ao ministro da Agricultura o poder de regular a importação, produção, distribuição, comercialização e uso de agrotóxicos – medidas hoje de competência da Anvisa. Esse artigo poderá permitir que ato do ministro flexibilize as regras atuais e autorize o uso de agrotóxicos não permitidos, em “caráter extraordinário e quando declarado estado de emergência fitossanitário e zoossanitário”. Para o deputado Rosinha, o artigo “dá poder ao Ministério da Agricultura (Mapa), dominado pelos ruralistas, e subjuga os outros dois órgãos (Anvisa e Ibama) para decidir o que bem entender quanto ao uso de venenos (agrotóxicos) na agricultura”.
Se a lei for aprovada nesses termos, representará enorme retrocesso na regulamentação dos agrotóxicos. Nos anos 1970-80, durante a ditadura militar, órgãos do Mapa eram responsáveis pelo assunto, e sua proximidade com as empresas agroquímicas foi amplamente criticada. A pressão dos ambientalistas levou à aprovação da primeira lei dos agrotóxicos no Brasil, a do Rio Grande do Sul, em 1982, e à legislação nacional, em 1989.
Ainda há esperança?
O forte movimento para ampliar a utilização de OGMs e agrotóxicos sem observar o princípio da precaução, no Brasil, exige do consumidor cuidado redobrado. Além de ler os rótulos dos produtos, uma dica é ficar atento ao website da CTN-Bio – que também é criticada pelas relações duvidosas de alguns de seus membros com as multinacionais de OGMs. Vale também ficar alerta aos movimentos de congressistas que visam reverter conquistas importantes, como a rotulagem dos alimentos geneticamente modificados.
A boa notícia é que, paralelamente, a agricultura orgânica e ecológica está em expansão no país. Além do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, lançado pelo governo federal em outubro, acontece entre 25 e 28 de novembro, em Porto Alegre, o mais importante evento de agroecologia no país. O Congresso Brasileiro de Agroecologia, em sua oitava edição, contará com mais de 1.000 trabalhos a serem apresentados nas modalidades comunicação acadêmica, relato de experiências e exposição de pôsteres. Esse número expressivo de participantes, além do público ouvinte, sinaliza que existe muita pesquisa na área, o que demonstra a aceitação e vitalidade do tema. 
O argumento de que a agricultura precisa de todo o pacote tecnológico que propugna indispensáveis o uso de agrotóxicos e sementes geneticamente modificadas para alimentar o mundo não tem mais sentido. Esperamos que mais e mais recursos sejam destinados à agricultura ecológica para que possa expandir seu espaço de atuação, especialmente em propriedades familiares, que valorizam a terra, o respeito e o cuidado com o solo, com os animais e vegetais que habitam a propriedade, com seu semelhante que vai comer o alimento, e, por extensão, todo o planeta. Partindo de “uma ética que liga tudo com tudo”, como dizia Lutzenberger em seu Manifesto Ecológico, essa agricultura pode, quem sabe, curar o mundo.

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