quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Substantivos femininos: mulher, moradia e luta

Carolina Freitas, do blogueirasfeministas.com
 
Diário Liberdade
A moradia é basilar em qualquer processo de democratização do espaço urbano. A moradia, a casa, é o lugar em que se dá a reprodução da família, mas, mais do que isso, é o espaço privado de segurança dos indivíduos. É a garantia mínima de território afirmativo dos grupos humanos.

A respeito do território, a diferença entre homens e mulheres no que diz respeito à titularidade de imóveis registrados é brutal. A propriedade privada, sedimentada na realidade das classes médias e altas, não acontece formalmente para os trabalhadores. As relações informais de compra e venda de terrenos, os alugueis e as ocupações são as formas mais frequentes com que se assentam as pessoas na cidade.

As mulheres pobres são frequentemente as maiores atingidas pela leva diária de despejos ocorridos na cidade de São Paulo. Seja porque são as chefas da família em que não existe uma figura masculina, seja porque são trabalhadoras na própria casa. São elas que assumem a responsabilidade de proteger os filhos da perda de um teto e de pertences essenciais, adquirindo uma necessária postura criativa perante os desafios financeiros, seja distribuindo a prole na casa de conhecidos e outras parentes, resignando-se a dormir e viver na rua, seja aumentando ainda mais as suas jornadas de trabalho para poder prover com rapidez um outro espaço onde morar.

Perante essa realidade, pouco faz o Estado. Novamente, sua relação dependente da iniciativa privada o move para a administração de programas habitacionais que não contemplam a mais grossa e verdadeira demanda de moradia urbana. Em contrapartida, atendem com precisão o interesse dos especuladores imobiliários.

Muitas mulheres, por serem trabalhadoras informais, não conseguem acesso aos cadastros porque não correspondem ao perfil de adimplência dos financiamentos. Além disso, os programas da vez, como o Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, não atende sistemicamente a população mais pobre, voltando-se preponderantemente às classes médias.

Muito se comemorou a mudança da Lei 11.977, que regulamenta o programa Minha Casa, Minha Vida, no que diz respeito à transferência da titularidade do financiamento para o nome da mulher responsável pela família. Outra questão é a medida provisória que garante a casa financiada à mulher em caso de divórcio ou dissolução da união estável. Sabe-se que quase 90% dos contratos de financiamento constam como titulares as mulheres.

Esse dado demonstra efetivamente a massiva e crescente chefia feminina dos lares, mas não aponta como avanço em direção a um projeto democrático de cidade. O aporte do Poder Público para a construção das casas é imenso e a lucratividade é distribuída às empreiteiras envolvidas. A política de habitação torna-se, assim, um segmento de mercantilização.

Esse mercado de moradia popular vem se tornando foco das parcerias entre governos e corporações, pois conciliam interesses compartilhados mutuamente: de um lado, substituem-se as políticas públicas e a organização da demanda formulada pelo próprio povo e, por outro, atende-se a taxa de lucros e dividendos políticos para a manutenção de uma relação estável com as empresas privadas e com o eleitorado:

O perfil de atendimento previsto pelo pacote revela, porém, o enorme poder do setor imobiliário em dirigir os recursos para a faixa que mais lhe interessa. O déficit habitacional urbano de famílias entre três e 10 salários mínimos corresponde a apenas 15,2% do total, mas receberá 60% das unidades e 53% do subsídio público.

Essa faixa poderá ser atendida em 70% do seu déficit, satisfazendo o mercado imobiliário, que a considera mais lucrativa. Enquanto isso, 82,5% do déficit habitacional urbano concentra-se abaixo dos três salários mínimos, mas receberá apenas 35% das unidades do pacote, o que corresponde a 8% do total do déficit para esta faixa. No caso do déficit rural, a porcentagem é pífia, 3% do total. Tais dados evidenciam que o atendimento aos que mais necessitam se restringirá, sobretudo, ao marketing e à mobilização do imaginário popular” .(1)

Sabe-se que a destinação da titularidade às mulheres em muito se refere ao fato de representar um perfil social de maior fidelidade ao contrato e de responsabilidade com a manutenção do entorno. Nesse sentido, fica claro que as mulheres são, novamente, objeto de interesse do conluio do Estado e do capital, mas não sujeitos que definem suas prioridades políticas. Atravessam o espaço público, mas não o definem por vontade da ordem.

Substantivos Femininos: Mulher e Luta
A saída das mulheres negras e trabalhadoras para os desafios e sinucas de bico da vida urbana compreende muitas vezes o seu protagonismo nas lutas sociais. As ocupações de terra, por exemplo, são experiências da classe trabalhadora em que as mulheres sistematicamente assumem a linha de frente: são elas que respondem pela construção dos barracos, pelo levantamento e manutenção da estrutura básica de sobrevivência da ocupação e, ainda, pelo enfrentamento direto com a polícia.

Dentro dos movimentos populares organizados, é nítida a reprodução do machismo nas relações políticas. Frequentemente se observa que as mulheres assumem tarefas fundamentais de organização, cadastro, alimentação, comunicação, entre outras, mas os momentos públicos, como as assembleias e reuniões, são tomados pelas falas e direções masculinas.

Mesmo assim, é inegável que nos setores populares organizados o papel da mulher é redimensionado. É diferenciado em relação ao seu papel ordinário na sociedade, até porque o povo se movimenta a partir das contradições da sua realidade mais primordial, a partir do cotidiano e do enfrentamento da sobrevivência. Essa sobrevivência sempre é garantida pelo papel desempenhado pelas mulheres. Quando se eleva questões materiais de resistência da vida humana à esfera política, eleva-se também os sujeitos dessa luta diária ao espaço político, descola a prática privada à prática pública.

Por esse viés, pode-se afirmar que a luta pela tomada da cidade pelo povo é uma luta travada, inegavelmente, em razão das próprias contradições sexistas dominantes do capitalismo, pelo levante e pela ação das mulheres trabalhadoras, negras e periféricas.
 

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