quinta-feira, 25 de junho de 2020

NEM AS VIDAS, NEM A ECONOMIA, por Antônio Martins

NEM AS VIDAS, NEM A ECONOMIA

Não há fim à vista para a pandemia no Brasil. Bolsonaro, que colocou os negócios acima da Saúde, produziu a queda recorde do PIB e a desocupação de mais de 50%. Mas a crise é de todo o sistema político, como mostra a privatização das águas, votada no Congresso

Em que trecho estamos, do longo túnel de angústias que é preciso percorrer até o fim da pandemia? No Brasil, é rigorosamente impossível saber. Talvez por isso, as autoridades façam planos cuja origem é negar o real. A sociedade, sem encontrar alternativas, as acompanha. Nos últimos dias, o estado de São Paulo registrou recordes sucessivos de mortes e contaminações pela covid-19. Mas ao invés de apresentar ideias sobre como enfrentar a ameça, o governador projetou… a volta às aulas – que vai expor ainda mais intensamente a população ao vírus.

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Em Wuhan, o primeiro epicentro da doença, as autoridades decretaram uma quarentena drástica, que durou 72 dias. Ao final, o número de casos – que fora o maior do mundo – estava zerado, e a vida recomeçou. Itália e Espanha viveram semanas de hesitação trágica, mas em certo ponto agiram, enfrentaram o rigor de lockdows rígidos e inverteram a curva de contaminações. Agora, as ruas voltam a se encher. No Brasil, as cidades e estados que adotaram medidas parciais de afastamento social o fizeram a partir da segunda semana de março. Cem dias se passaram desde então. Agora, a taxa de contaminações e mortes multiplicou por oito.

Bolsonaro propunha colocar a Economia acima de tudo – e falava em empregos, como chantagem: (“vá trabalhar, ou morra”). Os resultados desta política também começaram a surgir. O FMI previu ontem que o PIB brasileiro despencará 9,1% este ano. E em maio, dos 169 milhões de brasileiros que compõem a população economicamente ativa, 51,3% estavam desocupados – um recorde absoluto. Já antes da crise atual, a queda abrupta dos investimentos em Ciência estava condenando o país a tornar-se um pária na nova onda de transformações tecnológicas que sacode o mundo.

A presença de um presidente negligente e sabotador – que bloqueou as providências mínimas necessárias ao combate da pandemia (como providenciar testagem) e estimulou a população a desrespeitar as medidas protetivas – foi um ingrediente decisivo. A desigualdade brutal, que inviabiliza o isolamento nas periferias e obriga a maior parte da população a seguir trabalhando ou perecer, também. Mas a tragédia deveria chamar atenção para outro fenômeno, menos debatido.

O sistema político brasileiro, de onde poderia partir ação, na ausência do presidente, permanece inteiramente desfuncional. O Congresso e os legislativos estaduais e municipais, em especial, foram capturados pelas classes mais retrógradas. Há uma bancada ruralista, imensa; uma evangélica; uma “da bala”. Mas quem defende a Economia Solidária, a Agroecologia, a Reindustrialização inteligente, os Comuns – para não falar nos operários, no precariado, nos agricultores familiares?

A correlação de forças no Parlamente não reflete a da sociedade. As causas são outras. Entre elas, o fato de o debate político ter sido esvaziado, nos trinta anos de neoliberalismo. Sustentou-se que a “mão invisível” dos mercados se encarregaria de espalhar a prosperidade; e que a tentativa de planejar o futuro, por meio da crítica social e da ação do Estado, estorvava burocraticamente este processo. O resultado da ausência de política foi a ocupação do poder pelo dinheiro, os lobbies, a compra de votos e, na ponta, o clientelismo. Basta comparar as principais referências históricas do Congresso Nacional — mesmo na época da ditadura — com os bizarros personagens de hoje…

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A luta pela transformação social se faz com as ferramentas disponíveis – não com as ideais. Dependemos das instituições atuais para afastar Bolsonaro e em seguida condená-lo e prendê-lo exemplarmente. Mas é útil lembrar, para ter a dimensão da longa tarefa à frente: este mesmo Congresso, que poderá decretar o impachment, aprovou ontem o Projeto de Lei 4162/19, que pode entregar a um oligopólio de corporações privadas os mananciais de água e o saneamento do país.

Indiferentes à tragédia, os grandes negócios prosseguem – e por isso Bolsonaro ainda resiste. Quem o sustenta, como já vimos, não são nem os fanáticos de classe média, cada vez mais minguados nas ruas, nem a baixa oficialidade do Exército e das PMs, incapaz de articular qualquer projeto de país ou de poder. É a oligarquia financeira. Ela precisa de um condottiere para atravessar a crise e não abandonará o capitão enquanto não se julgar segura com outra alternativa. A esta classe, não importam nem as valas comuns nos cemitérios, nem o declínio tecnológico da indústria e do país. Valem medidas como a concessão das águas – porque seu metiê é a rapinagem.

É por esta disfuncionalidade de longo prazo que foi trágico deixar que a extrema direita capturasse a crítica radical ao sistema político. E é também por esta razão que agora, quando o bolsonarismo borra-se em acordos de sobrevida com o Centrão, que é preciso encontrar caminhos para resgatar esta bandeira.

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