sexta-feira, 8 de março de 2019

Eucaristia e carnaval, por Edilson Cruz


Eucaristia e carnaval

Texto do Edilson Da Silva Cruz

Membro da Coordenação Paróquial de Pastoral da Paróquia N Sra do Carmo de Itaquera, São Paulo

Há quem diga que carnaval e religião não se misturam. À festa da carne se opõe o gozo do espírito; ao caos e barulho contrastam o caminho do silêncio e paz interior. Ledo engano. Carnaval também é mística, experiência transcendente, transparente e holística, a deixar pegadas que nos indicam caminhos novos de vivência de nossas espiritualidades.

 Penso no desfile da Mangueira e seu samba-enredo “Histórias pra ninar gente grande”: uma releitura da história do Brasil na perspectiva daqueles que, construíram o país, mas não levaram a fama. “A história que a História não conta”, que “tem mais invasão do que descobrimento”, traz à tona “mulheres, tamoios, mulatos”, “caboclos de julho”, “Dandara”, “Marias, Mahis, Marielles, malês”, personagens esquecidos, feitos figurantes em um teatro no qual foram protagonistas do que temos de melhor em termos de cultura e resistência.

E nossas narrativas religiosas cristãs, de que lado se encontram? Penso, como católico, na nossa missa celebrada a cada domingo.

Fomos catequizados na compreensão de que a missa é o banquete da “gente de bem”, dos “escolhidos” de Deus, que comungam porque não estão em pecado, por isso entram nas filas da comunhão com cara de piedade e repetem prontamente as orações e jaculatórias do missal.

Fomos doutrinados na “liturgia oculta”, a reverenciar as faustosas e imperiais celebrações, com seus panos litúrgicos de linho fino, banhado a ouro e pedrarias, como se a Igreja fosse legítima herdeira de César e seu Império.

Nos convenceram de que as narrativas bíblicas são a versão dos vitoriosos, dos donos do poder que Deus justifica, exigindo submissão e respeito às autoridades constituídas. Melhor ainda se não misturar a religião com a política, igreja tem mais é que cuidar da alma, não do corpo.

"Vocês ouviram o que foi dito, eu, porém lhes digo...", diria Jesus. É preciso “tirar a poeira” das catacumbas, revelar o “avesso do mesmo lugar” e lembrar que a missa é também celebração de resistência.

Missa não é banquete da gente de bem, mas memória da última ceia celebrada por um judeu perseguido político, prestes a ser assassinado pela aliança Estado-Religião, que decidiu reunir os seus e, em despedida, deixar a si próprio como dom. O “sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado” na cruz, é sangue da violência de César e do Templo, a ressoar história a dentro em outros césares e outros impérios.

Antes de herdar a suntuosidade imperial romana, somos herdeiros de um punhado de escravos maltrapilhos que fugiu do Egito, se libertou da escravidão e passou a cantar, em prosa e verso, que a liberdade conquistada é a experiência de Deus por excelência, pois se há Deus, só pode ser aquele que se alia aos escravos, desertados, exilados, martirizados. A liberdade já era um “dragão no Mar”, muitos anos antes de Aracati ver nascer Chico da Matilde, líder abolicionista do século XIX que desafiou o império brasileiro.

 E a bíblia, hoje instrumento de tortura e morte nas mãos de fundamentalistas e oportunistas, longe de narrar a versão dos vencedores, é dos vencidos que fala: os escravos do Egito, os exilados da Babilônia, os profetas assassinados pelo próprio povo, o Filho que teve igual destino. Acontece que os escravos, os pobres, as prostitutas, os “zé-ninguém”, na experiência do Deus do êxodo, escreveram e nos legaram sua vivência do Deus amoroso que é Pai e Mãe, soberano amante da vida, que inspira liberdade e dignidade. O Evangelho, relato de vencidos feito vencedores, também é “história que a História não conta” a inspirar nossas resistências, pois “é na luta que a gente se encontra”.

Celebrar a ceia do perseguido político, que amou os seus até o fim, é irmanar-se aos escravos de ontem e hoje, aos pecadores e maltrapilhos que ainda produz nossa sociedade, distante da suntuosidade palaciana que, à luz da Eucaristia, se revela monstruoso banquete de morte, quando a fé se dissocia do seu sentido ético e libertador.

Se eu fosse teólogo, sugeriria ao Papa incorporar versos do samba da Mangueira na liturgia da missa. Nos ritos de entrada, o ato penitencial seria introduzido pelos versos “tira a poeira dos porões, ó abre alas/ pros teus heróis dos barracões”, pra gente lembrar de pedir perdão por tantos heróis e santos anônimos que nossa conivência com a violência segue silenciando.

A liturgia da Palavra seria introduzida pelos versos “A história que a história não conta,/ o avesso do mesmo lugar” e, após as leituras ao ouvir “Palavra do Senhor”, o povo responderia “Na luta é que a gente se encontra”, como um convite amoroso de Deus.

 A resposta da oração dos fiéis seria a suplicante prece: “Eu quero um país que não está no retrato”. E me perdoem a heresia, mas na hora da Eucaristia, depois de dar graças a Deus, pois “é nosso dever e nossa salvação”, seria obrigatório continuar: “Salve os caboclos de julho”, e o povo a responder: “E quem foi de aço nos anos de chumbo”. Pra lembrar que a mesa da eucaristia também transforma em Páscoa a vida ceifada de nossos mártires.

E na hora da despedida, “Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe...chegou a vez de ouvir as Marias, Mahis, Marielles, malês”, que é pra gente voltar pra casa com vontade de descobrir na nossa profanada história a presença do Deus negro, mulher, escravo, presente em cada um e cada uma que, resistindo, nos legou a liberdade como a experiência do sagrado por excelência.

Assim seja.

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