quinta-feira, 25 de junho de 2015

É preciso que a sociedade se una e se mobilize para combater o retrocesso

Mobilização da sociedade é o antídoto contra o grave e iminente retrocesso

Se os movimentos sociais e organizações da sociedade civil continuarem a lutar separadamente, todos cairemos.


Carta Maior:

Maurício Guetta
Lula Marques/Agência PT
O cenário político desenhado para os próximos anos não deixa dúvida: viveremos, cada vez mais, graves ameaças de retrocessos em praticamente todos os temas relacionados aos direitos humanos, com especial destaque aos direitos socioambientais.

Direitos conquistados por indígenas e comunidades tradicionais, notadamente sobre as terras necessárias para a sua sobrevivência física e cultural, são objeto de inúmeras proposições legislativas, destinadas a alijá-los. São propostas que versam sobre uma infinidade de temas, tais como alterações constitucionais voltadas a petrificar a demarcação de terras tradicionais, a anular terras indígenas já demarcadas, homologadas e implantadas, bem como a permitir o desenvolvimento de atividades minerárias, hidrelétricas e agropecuárias em terras indígenas, apenas para citar algumas das mais impactantes.

A ofensiva contra os chamados direitos territoriais se estende amplamente ao direito fundamental de toda a coletividade de viver em um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Após desfigurar por completo o Código Florestal, o maior retrocesso legislativo ambiental da história do País – com consequências desastrosas para qualidade/quantidade de água, a produção de energia (já que o Brasil tem a energia hidrelétrica como base de sua matriz energética) e o combate às mudanças climáticas –, a bancada do agronegócio e suas aliadas (as bancadas evangélica, da mineração, da construção civil, da bala, dos meios de comunicação etc.) seguem sua ofensiva contra as unidades de conservação da natureza, com proposições legislativas tendentes a anular ou reduzir os limites de algumas dessas áreas ambientalmente protegidas e permitir a extração de minérios, a ampliação de latifúndios e a construção de mais hidrelétricas na Amazônia.

Trata-se da expansão das fronteiras de exploração dos recursos naturais brasileiros, em boa parte voltados para atender ao mercado internacional, em detrimento da qualidade de vida da população brasileira e dos direitos das populações vulneráveis, naquilo que alguns denominam de neocolonialismo. 

Longe de ser exclusividade dos direitos socioambientais, a agenda de retrocessos aos direitos humanos, estrategicamente arquitetada pelo Congresso conservador, é de assustar até os mais desavisados. São ameaças aos direitos urbanísticos, trabalhistas, à igualdade racial, à educação, à saúde, à justiça social, à igualdade de gênero, à liberdade sexual, à redução das desigualdades no sistema criminal, das crianças e adolescentes e outros tantos.

Tudo para atender aos interesses econômicos de empresas privadas financiadoras de campanhas eleitorais e/ou aos preceitos do fundamentalismo religioso.

Por falar nisso, a frágil democracia brasileira, ela própria, também vive período decisivo para o seu futuro. A reforma política, tão almejada pela sociedade brasileira, muito provavelmente não será reforma, mas, ao contrário, se destinará a estabelecer um conjunto de medidas que, como efeito prático, ampliará ainda mais o inescrupuloso controle da política brasileira pelo poder econômico privado, responsável por rotineiros descaminhos políticos e desvios de conduta no Legislativo e no Executivo. Tudo na contramão dos pleitos de movimentos sociais, unidos em torno da Plataforma pela Reforma do Sistema Político.

A manobra inconstitucional e antirregimental de Eduardo Cunha, realizada no último 27 de maio para reverter a derrota que havia sofrido no dia anterior, permitiu a aprovação, pela Câmara dos Deputados, da inclusão de uma aberração no texto de nossa tão aclamada Constituição cidadã: o financiamento empresarial para partidos políticos (não para candidatos). Sem adentrar aos detalhes sobre as consequências desastrosas que adviriam de sua aprovação definitiva, trata-se de proposta formal e materialmente inconstitucional. Formal, porque a matéria já havia sido votada e, ante a vedação contida no artigo 60, § 5.º, da Constituição, não poderia ter sido recolocada em pauta na mesma legislatura. Material, porque todo o texto constitucional estabelece como premissas basilares do sistema político-jurídico os princípios republicano e democrático, estatuídos logo em seu artigo inaugural, que ordena: “todo poder emana do povo.”

Apesar da evidente violação ao processo legislativo, a esperança de vermos combalidos os desmandos autoritários do presidente da Câmara caiu por terra quando a Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, indeferiu o pedido feito por dezenas de deputados e chancelou a manobra de Cunha, em decisão proferida na última semana. Aliás, não parece ser obra do acaso o fato de o Ministro Gilmar Mendes seguir impedindo a continuidade do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o financiamento privado de campanhas, ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil e que já conta com maioria de votos pela inconstitucionalidade. Em abril, as financiadoras de campanha celebraram o aniversário de um ano de paralisação do processo, com a certeza de que continuarão a ditar os rumos da res publica.

Para piorar, o Governo Federal vive dias de tensão e alta vulnerabilidade. Se é verdade que as conquistas progressistas em direitos fundamentais na Constituição de 1988 somente foram possíveis, entre outros fatores, pela fragilidade política do então Presidente da República José Sarney, é igualmente possível que a atual debilidade política do Governo de Dilma Rousseff seja um dos fatores responsáveis por permitir alterações significativas em nossa legislação. Só que, desta vez, as mudanças, se de fato ocorrerem, virão em forma de conservadorismo extremado e alijamento de direitos.

Um Executivo politicamente combalido, um Legislativo dominado por interesses privados e forças conservadoras e um Judiciário indiferente perante os atentados à ordem democrática: são esses os ingredientes para o desmantelamento de nossas conquistas em direitos fundamentais promovidas pela Carta Constitucional.

Apesar de todos os pesares, em tempos de retrocesso, devemos ser capazes de olhar adiante, para além da onda pessimista, e nos espelharmos em mobilizações que têm sido responsáveis por frear o ímpeto conservador-fundamentalista. Os dois exemplos de mobilizações sociais em torno de pautas socioambientais mais recentes nos mostram que é possível barrar medidas violadoras dos direitos básicos dos brasileiros, inclusive de minorias, garantidos pela Constituição.

A primeira, que reúne não apenas organizações indígenas, indigenistas e socioambientais, mas também associações de magistrados, advogados, procuradores da república, centrais de trabalhadores e parlamentares vêm conseguindo barrar a aprovação da teratológica Proposta de Emenda Constitucional n.º 215-A/2000 na Câmara dos Deputados, destinada a destruir terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação da natureza.

Além de ter evitado, no final de 2014, a sua votação na Comissão Especial – composta majoritariamente por ruralistas –, a mobilização conseguiu algo que nos parece inédito: contar com o repúdio formal de 48 Senadores à proposta antes mesmo da sua chegada ao Senado Federal.  

A segunda, com mais de 150 movimentos sociais, organizações e redes da sociedade civil de todo o Brasil, ligados às lutas indígenas, de comunidades tradicionais, socioambientais, do campo e da agricultura familiar, se uniu para impedir retrocessos impostos pelo Governo Federal e pelas indústrias farmacêutica, de cosméticos e do agronegócio no novo marco legal da biodiversidade (ou da biopirataria, como preferem alguns). Não é coincidência o fato de ter o Senado Federal acolhido boa parte das demandas dessa mobilização, apesar de sua parcial derrubada na Câmara, ocorrida a mando do lobby da coalizão empresarial interessada na recém-aprovada Lei n.º 13.123/2015.

Quem diria que o Senado Federal, notoriamente tido como casa legislativa conservadora, seria uma das principais esperanças contra o avanço de retrocessos impostos pela Câmara dos Deputados, a antiga casa do povo.

Se os movimentos sociais e organizações da sociedade civil continuarem a lutar separadamente, cada um com suas pautas específicas e isoladas, todos cairemos. Ou nos unimos de vez, numa onda progressista e popular destinada a virar o jogo, ou assistiremos à destruição dos direitos conquistados em 1988.

Em defesa da Constituição cidadã, dos direitos humanos, sociais, políticos e socioambientais, é preciso que a sociedade se una, deixando de lado, pelo menos por ora, suas eventuais rusgas ideológicas. Ou nos empenhamos juntos nessa luta, ou viveremos tempos sombrios de retrocessos. Mobilizem-se!
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Maurício Guetta é advogado do Instituto Socioambiental – ISA e professor de Direito Ambiental da PUC/SP.


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