As evidências de um crime
Poderíamos atribuir esse fúnebre festival de absurdos à incompetência ou à prepotência arrogante do governo ao confrontar a lógica, o bom senso, o conhecimento, a compaixão. Mas o que houve, principalmente, foi uma evidente e deliberada omissão criminosa que levou à morte milhares de cidadãos brasileiros – caminhamos, céleres, para a marca das 100 mil vidas perdidas
Algo de muito sério está acontecendo e não estamos nos dando conta ‒ ou até estamos, mas parecemos anestesiados, uns pela ignorância cega às atrocidades do governo, outros pela fidelidade suicida, alguns pelo profundo desencanto com a classe política, e há aqueles que admiram o sadismo descontrolado. Precisamos reagir.
Não é um pedido. É uma exigência, questão de sobrevivência como nação. Fatos trazidos a público pela imprensa durante a semana passada, de tão sérios, estão a exigir, dos tribunais daqui ou do exterior, a interdição imediata desse presidente insano e seu fantoche ministro da Saúde.
Domingo, Bolsonaro foi denunciado por crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional, em Haia. Esta é a quinta representação criminal contra ele. Nela, uma coalizão de entidades que congregam trabalhadores da área da saúde acusa o presidente brasileiro de “menosprezo, descaso e negacionismo” no combate à Covid-19, o que “trouxe consequências desastrosas”, como a disseminação da doença e o colapso dos serviços de saúde, resultando em milhares de mortes.
É muito, mas muito grave. Pelo tamanho da crueldade. Primeiro, lembremo-nos: desde as primeiras horas, Bolsonaro descarta conselhos e orientações, mostrando um impiedoso desprezo pela vida. Ainda em março, no mesmo dia em que o general-comandante do Exército se preparava para “o enfrentamento de uma pandemia que exige a união de todos”, o presidente foi para a TV falar que aquilo era uma “gripezinha”. Já tinham morrido 47 cidadãos brasileiros.
No início de maio, a ABIN, Agência Brasileira de Inteligência, encaminhava ao presidente um lote de 47 relatórios que sugeria a adoção do isolamento social e chamava a atenção para a falta de leitos de UTI e de testes para monitorar a pandemia. O que fez o capitão? Intensificou, nas ruas, a campanha pela retomada da economia. Já tinham morrido 7.321 cidadãos brasileiros.
Essa omissão genocida (genocida, sim) ficou evidente em decisões reveladas semana passada que envolvem o general-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e o homem que na verdade comanda o ministério, o presidente – razão pela qual até hoje o militar da ativa é tratado como interino; não há decisão que ele tome que não tenha sido determinada pelo capitão.
Então, vejamos o que se descobriu:
1 – No dia 25 de maio, o Comitê de Operações de Emergência em Saúde Pública do MS propôs ao ministro medidas sociais drásticas para evitar a superlotação das UTIs e o elevado número de casos. E alertava: “Sem isolamento, será necessário um tempo muito grande, de um a dois anos, para controlarmos a situação”. Já tinham morrido 23.473 cidadãos brasileiros. O que fez Pazuello? Baixou uma portaria em 19 de junho orientando a retomada das atividades. Já tinham morrido então 49.090 cidadãos brasileiros.
2 – Na mesma reunião de 25 de maio, o comitê técnico desaconselhou a compra de cloroquina em larga escala, “pois caso o protocolo venha a mudar, podemos ficar com um número em estoque parado para prestar contas”. O que fez Pazuello, que dias antes estabelecera o uso da cloroquina no protocolo do SUS? Comprou três toneladas de insumo farmacêutico para produzir o remédio do chefe.
3 – Em reunião dia 29 de maio, na secretaria executiva do MS, Pazuello foi informado de outra preocupação do comitê técnico: o risco de desabastecimento, na rede pública, de 267 insumos para o tratamento da Covid-19. Na ata da reunião, uma recomendação: “Não fazer divulgação dos dados” – dias depois, o Ministério tentou esconder e manipular os dados diários da Covid-19. Já tinham morrido 27.878 cidadãos brasileiros.
4 – Em fins de junho, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde denunciou falta de medicamentos nas UTIs dos hospitais públicos em 21 Estados e no Distrito Federal. Entre eles, anestésicos, sedativos e bloqueadores neuromusculares usados em pacientes entubados. Já tinham morrido 59.656 cidadãos brasileiros.
5 – No dia 3 de julho, o comitê técnico informou que o MS tinha 4 milhões de comprimidos de cloroquina em estoque. Já se sabia que o medicamento era ineficaz e perigoso. E já tinham morrido 63.254 cidadãos brasileiros.
6 – Dia 15 de julho, o Tribunal de Contas da União apontou que o Ministério gastou apenas um terço dos recursos que tem para combater o novo coronavírus. Dos R$ 38,9 bilhões que o governo afirma ter liberado, usou apenas R$ 11,4 bilhões. O que fez Pazuello? Disse apenas que o repasse “não é uma corrida de cem metros”. Já tinham morrido 75.523 cidadãos brasileiros.
Poderíamos atribuir esse fúnebre festival de absurdos à incompetência ou à prepotência arrogante do governo ao confrontar a lógica, o bom senso, o conhecimento, a compaixão. Mas o que houve, principalmente, foi uma evidente e deliberada omissão criminosa que levou à morte milhares de cidadãos brasileiros – caminhamos, céleres, para a marca das 100 mil vidas perdidas.
Cem mil brasileiros que irão atormentar para sempre a consciência dessa sociedade patética que se diz democrática, mas despreza um título que deveria utilizar com orgulho e nos coloca a todos como iguais – o título de cidadão, que não admite diferenciações, subordinações, distinções, humilhações. Nos últimos dias, vimos de um lado como brasileiros têm jogado esse conceito no lixo, impunemente; de outro, como o governo trata os filhos, ainda vivos, da pátria amada.
“Tudo que vem para pobre é com sacrifício. Tudo.” – desabafava na TV a mulher que, com o marido e a filha doentes, voltava pra casa depois de enfrentar longa fila e não conseguir mais uma vez resolver o problema burocrático para receber o auxílio emergencial de R$ 600 numa agência da Caixa.
Para completar:
‒ O conselho permanente da CNBB estuda a divulgação de um manifesto assinado por 152 bispos e arcebispos brasileiros. Mônica Bergamo antecipou na Folha o conteúdo da “Carta ao Povo de Deus”, que traz duras críticas ao governo Bolsonaro. Oremos.
‒ Sujeito de sorte esse Queiroz! Tá em casa por decisão do ministro João Otávio de Noronha, do STJ, o mesmo que rejeitou 700 pedidos similares por presos do grupo de risco da Covid-19.
‒ Liberdade de expressão é uma coisa. Fake news, manipulação da opinião pública e uso de robôs para disseminação de ameaças e ofensas em massa, outra.