Jornal do Brasil
O obscurantismo e a ignorância
despudorados empurram um país para trás
Gilberto Scofield Jr.
Vivi um tempo em que as pessoas ignorantes
morriam de constrangimento de sua
ignorância.
Quando eu falo em ignorância,
não estou me atendo à educação. Falo do
ato de ignorar, aquela coisa de ter opinião
formada com base em mentiras, por preconceito,
convicções religiosas com base em
textos escritos há dois milênios ou apesar do
desconhecimento. Exemplos: a terra é plana,
o homem nunca pisou na lua, transfusões de
sangue corrompem a pureza humana, Elvis
não morreu.
Ocorre que a vida passa em
ciclos e vivemos tempos sombrios, onde a
ignorância não apenas saiu do armário como
se exibe pelas redes sociais com um orgulho
de raiz. Essa ignorância-roots-ufanista não
seria problema algum se ela se limitasse a
quem a exibe com convicção. Paciência. Mas
quando a ignorância começa a se tornar perigosa,
seja porque coloca em risco a saúde
ou integridade do outro, seja quando ela é
característica de um governante cujas decisões
afetam milhões, então é hora de reagir.
Eu não consigo pensar em outra coisa
quando assisto ao retorno de doenças que
consideramos coisa do século passado, como
sarampo, pólio, difteria, caxumba, entre outras,
porque pais deliberadamente deixam de
vacinar seus filhos, apesar de toda a pesquisa
científica mostrando as vantagens da vacinação
pública e que vacinas não dão autismo (já
li isso em grupo de Whatsapp). Sobre isso,
uma parcela da culpa é dos governos, que
afrouxaram as campanhas de conscientização
sobre vacinas básicas ou não as colocam
à disposição nos postos e hospitais públicos
com a devida eficiência. Outra é dos pais, cuja
ignorância coloca em risco a saúde dos filhos.
Conta Natália Taschner, bióloga, pesquisadora
do Instituto de Ciências Biomédicas
da Universidade de São Paulo, no blog “Cientistas
explicam”, do excelente portal “Saúde”:
“O mais surpreendente é que famílias que
escolhem não vacinar seus filhos reportam
abertamente que usam, como fonte de informação,
as redes sociais!
Curiosamente,
o medo das vacinas espalhado pelas redes
começou por causa de um médico que ... queria ficar rico vendendo um imunizante contra
o sarampo. Para isso, fraudou um trabalho
científico a afim de relacionar a vacina tríplice
viral MMR, que protege frente a sarampo,
rubéola e caxumba, com o autismo.
A história aconteceu em 1998 e o protagonista
foi o médico britânico Andrew
Wakefield. Seu estudo, embora tenha sido
publicado em um periódico respeitado no
meio científico, contava com apenas 12 pacientes
e não dispunha de fundamento. Forjando
uma relação inexistente, Wakefield
afirmava categoricamente que a vacina era
a causa do autismo de seus pacientes.
Anos depois, descobriu-se não apenas
que a pesquisa era uma fraude, com todos
os dados e prontuários alterados, como também
o estimado doutor havia sido financiado
por um advogado que pretendia lucrar
milhões processando os fabricantes da vacina.
Ele mesmo tinha ambição de patentear
uma nova vacina para substituir a MMR”.
Informar-se exclusivamente por posts de
redes sociais, sem uma fonte confiável por
trás, é das nossas maiores e mais prejudiciais
fontes de ignorância coletiva. Recentemente,
o presidente Donald Trump – um clássico
ignorante roots-ufanista – tuitou: “Crianças
saudáveis vão ao médico, são bombardeadas
com um monte de vacinas, não se sentem
bem e mudam — AUTISMO. Muitos casos”.
Precisamos de uma vacina de iluminismo já.
Porque a tentativa de ignorantes obscurantistas
de empurrar todo um país para a Idade
Média parece ter crescido nos últimos anos.
A problemática das vacinas é apenas um
exemplo. Em fevereiro, a Anistia Internacional
produziu um relatório em que dizia
que “diversas propostas que ameaçavam direitos
humanos e retrocediam adversamente
as leis e políticas existentes avançaram” no
Brasil. O documento critica a proposta de
redução da maioridade penal, as tentativas
de flexibilizar o acesso às armas de fogo, a
criminalização dos protestos, a proibição
absoluta do aborto até em casos de estupro,
as mudanças nos processos de demarcação
de terras indígenas, a precarização da reforma
trabalhista e a Lei 13.491/2017, que diz
que crimes cometidos por militares devem
ser julgados em tribunais militares.
A esses
pontos eu somaria a liberação dos agrotóxicos,
as agressões a locais de culto de religiões
de matrizes africanas, a pressão pela inexistência
de educação sexual nas escolas ou o
próprio Escola Sem Partido, entre outros.
É certo que muitos desses pontos não
são frutos da ignorância sozinha, mas de
uma complacência ignorante a serviço de
interesses de grupos poderosos. Como defender
o uso indiscriminado de armas de
fogo se, na semana passada, um cabo da
PM – uma pessoa que, em tese, é treinada
para lidar com a posse de armas – atirou
e matou um rapaz de 16 anos porque ele
estaria “fazendo barulho demais”?
Mas há
100% de ignorância no ataque a locais de
culto de religiões de matrizes africanas, na
pressão pela falta de educação sexual nas
escolas, na proibição do aborto até em casos
de estupro, enfim, ignorância de várias
origens que é preciso combater. Ignorância
se combate com educação. E no dia a dia,
dando acesso às pessoas a informações
confiáveis, embasadas em dados empíricos
ou investigações e estudos sérios. Nas urnas,
diluindo as danosas bancadas BBB (da
bala, do boi e da Bíblia) e devolvendo-as à
Idade Média e ao faroeste de onde nunca
deveriam ter saído.
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