Hoje não se trata apenas de escolher um novo presidente da República. Hoje não vamos às urnas para optar por um plano de governo, por uma proposta para administrar o país. Hoje, passados pouco mais de cinquenta anos do último golpe na democracia, que instalou uma ditadura, que se estendeu por cerca de vinte e cinco anos, vamos dizer se queremos preservar as conquistas políticas, sociais e civilizacionais asseguradas pela Constituição de 1988, ou se vamos mergulhar em mais um período de Estado de exceção, em mais um período de obscurantismo político e civilizacional. A democracia brasileira pode permitir hoje, por mais contraditório que possa parecer, que o país opte por pôr fim ao próprio regime democrático. É visível o descompromisso com os valores democráticos de um dos candidatos que chega, hoje, à reta final do segundo turno. Por incrível que possa parecer, podemos ter um ditador eleito em eleições livres por uma população descrente da vida política, ressentida pela perda de direitos, apavorada com a insegurança pública, envenenada pela campanha contra as agremiações de esquerda promovida pela grande imprensa do país, manipulada pelo derrame de notícias falsas através das redes sociais, desinformada por uma campanha que se notabilizou pela ausência do debate propositivo e pelo apelo às reações morais e afetivas em detrimento de decisões racionais, apoiadas em argumentos.
Hoje, todos aqueles que afetivamente valorizam a liberdade, valorizam o direito de ir e vir, o direito de livre expressão e manifestação tem que se colocar contrário a um candidato que não para de afirmar publicamente seu desapreço pela liberdade, suas simpatias pelas ditaduras, que diz com todas as letras que acabará com todo ativismo político no país, que conclama e promete o assassinato e o encarceramento dos opositores. Não há democracia sem o direito a oposição, sem o direito assegurado ao contraditório, sem o reconhecimento do direito do outro pensar e ser diferente, sem o reconhecimento por parte das instituições de Estado do direito ao conflito, a discordância, a militância em prol de causas políticas, económicas e sociais. Um candidato que já disse que caso chegasse ao poder fecharia o Congresso Nacional, que daria um golpe. Um candidato cujos partidários e, até seu filho, ameaçam com a desobediência às leis, com o não reconhecimento das decisões judiciais, inclusive daquelas emanadas pelos tribunais superiores. Um candidato que ameaça de invasão o Supremo Tribunal Federal, que desqualifica publicamente os juízes da Suprema Corte, que pretende submeter aquele tribunal modificando a sua composição com um aumento do número de cadeiras, tal como fez a ditadura de 1964, não pode ser visto como um defensor da vida democrática. A democracia exige o respeito à lei e as instituições, e a contestação de qualquer injustiça ou violação de direitos através dos trâmites legais.
Ninguém pode dizer que foi enganado pelo candidato. Ele está aí há anos mostrando seu desprezo pelas opiniões alheias, seu desprezo pelos mais pobres, pelos mais vulneráveis, pelos negros, pelos gays, lésbicas e trans, pelos portadores de deficiência. Quem já defendeu a castração e a laqueadura dos homens e mulheres pobres, quem mede os negros em arroba e disse que seus filhos são bem criados por isso não fariam promiscuidade casando-se com uma pessoa negra, quem defende que as mulheres devem ganhar menos que os homens pois engravidam, que diz preferir um filho morto do que um filho agarrado com um bigodudo, que considera a homossexualidade uma doença, que foi condenado por fazer apologia do estupro, é o pior ser humano que se pode ter para se dar um voto. É muita cegueira, é tapar os ouvidos para não ouvir que esse homem não é apenas uma ameaça a democracia, mas uma ameaça à civilização. Ele no poder pode significar a instalação da mais pura barbárie.
Enquanto a nossa grande mídia finge que nada está vendo, que tenta, inclusive, tornar palatável um candidato tão amargo, que se torna descaradamente comitê de campanha de uma candidatura, sem que a Justiça Eleitoral tome providências, a imprensa internacional, desde os órgãos mais conservadores até os mais a esquerda, estão todos perplexos com a escolha que a sociedade brasileira pode fazer hoje. Causa perplexidade que uma sociedade possa marchar com seus próprios pés para o abismo, se lançar numa aventura que pode significar a desagregação social e a destruição econômica do país. O candidato da extrema-direita é uma excrescência para a própria extrema-direita, pois, apesar de seu slogan nacionalista, é um entreguista, que bate continência para a bandeira norte-americana, que tem como projeto de governo entregar à iniciativa privada, ao capital estrangeiro, todas as nossas empresas estatais, mesmo as mais estratégicas, que não deixa de fora da entrega nem mesmo a Amazônia. Por isso os empresários brasileiros e estrangeiros estão por trás do financiamento ilegal de sua campanha de mentiras e difamação.
Nesse momento em que há uma real ameaça ao processo democrático, é preciso que todas as forças comprometidas com a democracia se reúnem em sua defesa. É preciso, nesse momento, deixar as divergências de lado, o que não significa deixar de discordar ou ser crítico em relação a candidatura e o partido que representam nesse segundo turno a defesa dos valores democráticos. Nesse aspecto, o partido e o candidato das forças democráticas não merecem o menor reparo em suas trajetórias. Se alguns de seus membros se deixaram tragar pelo sistema de corrupção que financiavam eleições no país, se cometeu equívocos quando de sua permanência no governo, se fez alianças com forças que merecem reparo, se mesmo nesse processo eleitoral cometeu erros, temos que relevar tudo isso em nome de valores maiores: o da liberdade e o da democracia, dos quais o partido nunca se distanciou. Não é jogando o país num abismo que vamos punir os possíveis erros das forças democráticas. Não é apostando no quanto pior, melhor, não é desprezando a política, votando branco ou nulo, ou se abstendo de votar que iremos aperfeiçoar nossa democracia, podemos é a estar matando no berço.
Para aqueles que pensam que ditadura resolve alguma coisa, estude um pouco de história e aprenda que saímos da ditadura instalada em 1964 com uma sociedade das mais desiguais do mundo, com uma concentração de riqueza brutal, com um sistema educacional em frangalhos, com uma dívida externa imensa, com grandes deficiências nos serviços públicos, com uma relação entre Estado e empresas mediada pela corrupção sistêmica, com um enorme retrocesso em termos civilizacionais, com uma violência urbana crescente. Vivemos, naquela época, tempos de medo, repressão e violência, tempos de torturas, prisões e desaparecimentos por motivos políticos. Foram muitos anos de luta e muitos sacrifícios de vidas para conquistarmos a democracia que temos, não a jogue fora porque a liderança religiosa te disse para votar numa figura que representa tudo o oposto do que Cristo pregou. Não jogue fora a democracia porque o seu patrão lhe intimidou ou convenceu de que o candidato dos ricos vai salvar seu emprego e melhorar sua vida. Ele sempre demonstrou nos vinte sete anos em que está presente no Congresso Nacional que é um inimigo da classe trabalhadora, sempre votando contra seus interesses. Ele advoga a volta dos tempos em que as relações de emprego e trabalho eram mediadas pela bala e pelo jaguncismo. Ele disse com orgulho que votou contra os direitos trabalhistas das empregadas domésticas. Ele já disse que pobre só presta para votar, com um diploma de burro no bolso. E ofereceu capim aos nordestinos, a quem chamou de coitados. Acabar com o coitadismo significa acabar com as políticas sociais, com o Estado de bem estar social e apostar na ausência completa do Estado. Por isso ele é o candidato dos ricos, pois eles não precisam do Estado e não o querem financiar pagando impostos e contribuições. O candidato da extrema direita é a encarnação do egoísmo e da falta de consciência social das nossas classes dominantes, sempre preocupadas apenas com seus privilégios.
Não serão apenas os negros, os pobres, os LGBTs, os nordestinos, os índios que serão coitadinhos se o candidato fascista vencer. Já vimos nesses últimos dias de segundo turno o que poderá se tornar o país sem democracia. Começamos a perceber que coitados também serão os professores, os intelectuais, os artistas e agentes de cultura, serão os estudantes e técnicos das Universidades, que foram invadidas de forma ilegal por forças de segurança que se tornaram aliadas de um candidato. Reconhecendo que o candidato é fascista e antidemocrático, manifestações a favor da democracia e contra o fascismo foram consideradas propaganda eleitoral, por agentes da justiça eleitoral militante de uma candidatura. A violação da autonomia universitária, do direito de manifestação e reunião, do direito de ir e vir, a prisão arbitrária de professores, a recolha de material em defesa da legalidade democrática, a invasão de aulas, reuniões, bastando para isso qualquer denuncia de um partidário do candidato antidemocrático, deu uma amostra do que se tornará o país se fraquejarmos nesse domingo na defesa do bem maior que é a democracia. Só com ela preservada é que nossas diferenças e divergências políticas, morais, éticas, religiosas, ideológicas, poderão ser respeitadas e debatidas. Sem democracia aquele que inicialmente se considerará vencedor descobrirá, com o tempo, que também é um coitado, por ter acreditado que ódio, violência, opressão, pode construir segurança, ordem, paz e progresso. Se a democracia fenecer, a longo prazo, todos serão coitadinhos, mesmo aqueles que hoje apoiam as forças do retrocesso. Foi assim na ditadura de 1964, os apoiadores de primeira hora foram sendo vítimas do regime que apoiaram. Quem aposta no arbítrio, quem abre a porta para o desamparo da legalidade, pode, mais dias, menos dia, ser uma de suas vítimas.
Coitados de todos nós se hoje não vencer a democracia!